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Title: Por que ler os clássicos

Writer: Italo Calvino

Translator: Nilson Moulin

Dados sobre a tradução

  • Classification: Tradução; Ensaio, estudo, polêmica
  • Publication year: 1993
  • Publisher: Companhia das Letras, São Paulo, SP
  • Languages: Português
  • Medium: Impresso
  • ISBN: 8571643393
  • Number of pages: 280
  • Dimension: 14x21 cm

Dados do(s) original(ais)

Source(s)

  • Projeto Dicionário Bibliográfico da Literatura Italiana Traduzida

Fierce

Por que ler os clássicos, de Italo Calvino


Por Sergio Nunes Melo

Outubro/2025


⠀⠀⠀A tradução brasileira de Por que ler os clássicos, uma das compilações da profícua ensaística de Italo Calvino, escritor que tem figurado entre os dez mais traduzidos em nosso país, foi elaborada por Nilson Moulin, profissional que reúne, em sua premiada trajetória, a tradução de nove das dezenas de títulos de Calvino disponíveis em português do Brasil. Lançado pela primeira vez em 1993 pela Companhia das Letras, o livro foi reeditado em 2007, estando hoje na segunda edição e na quarta reimpressão – em formato de brochura. Em setembro de 2023, celebrando o trigésimo aniversário de circulação da tradução brasileira do título aqui abordado, a editora lançou uma edição especial, que, além de capa dura e projeto gráfico específico com algumas fotos de Calvino, conta com o posfácio de Maria Cecília Gomes dos Reis, professora universitária de História da Filosofia Antiga e tradutora de grego antigo. Ambas as edições continuam em circulação, mas a editora se reserva o direito de não disponibilizar dados sobre a tiragem de exemplares.


⠀⠀⠀Por que ler os clássicos é uma coletânea póstuma de ensaios esparsos de Italo Calvino organizada por sua esposa, Esther Calvino, e publicada pela primeira vez em 1991, seis anos após a morte do autor. Combinando uma erudição extraordinária a uma perspectiva alinhada com o rigor da teoria da literatura, mas com a verve e a leveza de um consagrado contador de histórias, característica inerente a todos os textos do livro, um ensaio introdutório, pautado por catorze aforismos comentados, discute a essência de um clássico, fundamentando a argumentação em princípios ordenadores cujos desdobramentos vão se encadeando. O raciocínio de Calvino parte da popular asserção – com frequência motivada pela vergonha que os leitores mais jovens sentem por ainda não terem lido certos títulos do cânone universal – de que um livro célebre está sendo relido, em vez de lido pela primeira vez. Calvino salienta a impossibilidade de leitura de todo o espectro de títulos merecedores da classificação, haja vista a quantidade gigantesca de textos dignos de notoriedade. O fenômeno da inevitável lacuna de leituras fundamentais, isto é, uma lista de clássicos não lidos, abrange todas as idades, aplicando-se também, portanto, a idades maduras. De todo o modo, segundo Calvino, as releituras são sempre bem-vindas pois, ao longo do tempo, os clássicos têm o potencial de levar até um mesmo leitor que revisita um texto a abordagens significativamente diversas, resultantes de percepções adquiridas com vivências posteriores a suas leituras passadas.


⠀⠀⠀As leituras dos clássicos feitas na juventude, argumenta Calvino, são formativas no sentido de que elegem formas literárias como referenciais de predileção: critérios orientadores do percurso de recepção de um indivíduo até mesmo quando a memória do primeiro contato com um título tiver se tornado um registro pálido de uma experiência remota. Visto que todo clássico, argumenta Calvino, é um livro que jamais esgota o que tem a dizer, em função de sua atemporalidade temática e de seu estilo contundente, sua abrangência interpretativa constitui a própria cultura em que estamos imersos – ainda que, por vezes, as interpretações lhe distorçam o sentido. Calvino exemplifica o aspecto da distorção do clássico com o uso corriqueiro do adjetivo kafkiano, diante do qual quem realmente tenha lido a obra de Kafka reage com aprovação ou desaprovação com respeito à propriedade ou à impropriedade de aplicação do termo. Neste sentido, recomenda Calvino, devemos resguardar as oportunidades de nos surpreendermos com um clássico, através da priorização da sua leitura em detrimento da fortuna crítica que o circunda, a qual pode nos afastar da experiência de interação genuína com a obra que, embora ensejando uma quantidade considerável de comentários, tem o potencial de, com equivalente autoridade, repeli-los. 


⠀⠀⠀O ensaio propedêutico é concluído, numa alusão aos últimos momentos do filósofo Sócrates antes de sua execução, com a reflexão de que a leitura dos clássicos não precisa ir além do propósito de proporcionar o aprendizado de um clássico, isto é, a cognição de um artefato que contribui com a nossa própria organização como indivíduos a despeito de todo o inevitável ruído ao nosso redor. 


⠀⠀⠀O primeiro ensaio que foca especificamente num clássico analisa a Odisseia, de Homero, ou melhor, as Odisseias, dada a multiplicidade de narrativas contidas neste que é um dos textos inaugurais da literacia no Ocidente, escrito a partir do legado de séculos de tradição oral. No que pese a jornada como metáfora de sentido existencial da epopeia em foco, Calvino argumenta que a narrativa é perpassada pelo conceito implícito de que aquilo que se conta, isto é, a memória do passado, só tem sentido se o projeto da ação pretérita estiver conscientemente relacionado com o que, um dia, foi projeto de futuro. A ponderação põe em relevo a interdependência entre ser e devir, dinâmica constitutiva da vida e compartilhada pela ficção, pela criação, bem como pela recepção das artes cuja apreciação necessariamente requeira o desenrolar do tempo sucessivo-linear. Ao fazer a apologia dos clássicos, Calvino não está meramente acenando para um resgate do passado em si mesmo, tencionando preservá-lo como um item museológico. Ao contrário, Calvino formula que a memória só tem sentido na medida em que aponta para um projeto, isto é, para uma continuidade do passado no futuro. Neste horizonte, Calvino declara sua própria experiência como escritor na medida em que recria os clássicos que elegeu como seus. Considerando-se o foco da unidade perceptiva entre o passado, o presente e o futuro nas Odisseias, é possível sugerir que este ensaio contenha o tema da consistência que, assim como a multiplicidade, teria integrado o conjunto de temas das palestras na Universidade de Harvard, projeto interrompido pela morte de Calvino antes dele ter elaborado a sexta palestra, razão pela qual as preleções não chegaram a ser lidas para o público destinado. Pelo mesmo motivo, o livro Seis propostas para o próximo milênio contém apenas cinco eixos temáticos.


⠀⠀⠀Desdobrando a perspectiva introdutória, os demais trinta e cinco ensaios focam em obras e autores clássicos, tanto os já consagrados pela tradição, tais como aqueles que ainda não tiveram tempo de passar com êxito por esta prova de fogo, mas que manifestam, desde seu aparecimento, vigor para o desafio. No ensaio a respeito de Anábase, de Xenofonte, Calvino salienta o caráter de documentário que confere dignidade a cenas terríveis de embates bélicos com perda de contingente humano bem como o confronto com obstáculos físicos, tais como a travessia de montanhas nevadas. É possível reconhecer, neste ensaio, reverberações da proposta exatidão, desenvolvida por Calvino tanto em sua literatura quanto em sua ensaística.


⠀⠀⠀O ensaio sobre Metamorfoses, de Ovídio, examina a contiguidade entre todos os entes: fauna, flora, reino mineral e deuses. As histórias terrestres mimetizam as celestes, mas se entrelaçam em espirais. Calvino observa que a narração não tem interrupções bruscas. Ao contrário, todos os contos estão interligados, amalgamando a consistência à multiplicidade, bem como à leveza, entendida como leveza de perspectiva.


⠀⠀⠀De livros completamente inexplorados por traduções para a língua portuguesa, tais como o poema As sete princesas, do persa do século XII Nezami, com a poligamia como pressuposto normativo, e o Cálculo dos prazeres e das dores da vida humana, do veneziano do século XVIII Gianmmaria Ortes, com sua crítica paradoxal e pessimista da Razão, a obras extensamente adaptadas, como Robinson Crusoe, de William Defoe, analisado por Calvino como um diário das virtudes mercantis, passando por obras célebres, tais como Ficções e A biblioteca de Babel, de nosso vizinho linguístico e geográfico, Jorge Luis Borges, Calvino oferece um caleidoscópio de apresentações e rememorações aos leitores brasileiros.     


⠀⠀⠀No caso das obras que não conhecemos, os ensaios funcionam como convites a uma primeira leitura, contendo até relatos sucintos dos enredos. Quanto às obras que conhecemos, os ensaios fornecem perspectivas que provavelmente podem enriquecer nossas leituras através da exposição de suas poéticas, de suas particularidades estilísticas. Leitores afeitos à ficção e à ensaística de Calvino poderão observar convergências entre os temas abordados nestes ensaios e em outros textos literários do autor, tais como Cidades Invisíveis. Jamais pretendendo reduzir sua visão à verdade última sobre os textos examinandos, Calvino é invariavelmente certeiro, fazendo com que esta coleção de ensaios já tenha nascido um clássico.

 

Referências


Calvino, Italo. Perché leggere i classici. Milano: Mondadori, 1991.

Calvino, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. Edição especial. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

Ecos da Tradução. Disponível em https://ecos-da-traducao.blogspot.com/2017/09/conheca-index-translationum-o-catalogo.html


Reference

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Translation from Nilson Moulin. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1993.


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